Há um momento singular, quando
se veleja rumo ao alto oceano, em que a presença da terra firme se esmaece,
deixa de predominar, e então o mar, o céu e os ventos envolvem por completo o
navegante, e tudo se torna diferente. Algo de similar se passa com os
alpinistas quando avistam o cume, e com os astronautas quando o ronco dos
foguetes silencia. E, é claro, quando se adentra a floresta.
A floresta condensa toda o viver, toda a vida. Inumeráveis
dimensões, possibilidades de ação, movimento e desvio, simultâneas e
redobradas, encarnam-se na profusão de seres, em perene mescla, em disparatada
harmonia. A floresta é linguagem, mil línguas murmurando-se, mil sombras
lampejando-se. Poucos infinitos nos são dados de modo tão inteiro, tão
múltiplo, tão intimamente estrangeiro. A floresta tudo toma, pois está no mais
de tudo fundo. Estar ali é tornar-se algo, outro; o inconsciente se estrutura
como uma floresta. A Amazônia é o inconsciente do Brasil.
Sobretudo, a floresta é complexa. Muitos componentes, em muitas
relações mútuas, escalonadas em muitos níveis de ordenação. Ser complexo é
dobrar-se sobre si e sobre o fora. O oceano americano de clorofila se conecta
com o oceano africano de silício atravessando as águas do Atlântico. Grãos de
poeira são trazidos do Saara pelos ventos alíseos e nucleiam chuva na Amazônia.
A evaporação da floresta recicla esta umidade, formando rios áereos que irão se
despejar nas nascentes e bacias do Sudeste. As cataratas do Iguaçu advém assim do
deserto - evidência da interconexão global do sistema complexo Terra - mas
ainda mais notável é compreender que a transpiração da floresta é sua
respiração: a floresta gera a chuva que a gera.
Este é o contexto em que podemos situar as ações humanas
na e sobre a floresta. Durante milênios os povos originais ocuparam e
transformaram a floresta, fertilizando-a com a terra preta de índio, semeando
com castanheiras uma faixa diagonal sudoeste-nordeste de milhares de quilômetros,
incorporando-se a seu corpo. Desde que o Antropoceno - a época em que o
conjunto da atividade humana tornou-se uma força de alcance planetário - se
instalou, porém, há pouco mais de seis décadas, um terço da extensão da mata
foi destruído ou alterado. A suavidade da presença milenar indígena contrasta
brutalmente com o impacto da voragem capitalista. E é aqui que a questão da
sobrevida - da floresta, dos índios, do Brasil - se coloca, indesviável.
A poesia meticulosa das imagens de Patricia Gouvêa designa
precisamente este horizonte de deslimites. A floresta reassimila a casa
arruinada, como convém, espalha suas marcas refazendo sua pele de musgos,
assoma miraculosa no bocal imóvel do encanamento perdido. O homem dá-lhe o que
não carece - um nome, um centro. O tempo humano dos artefatos se afoga no ciclo
imenso das terras raízes troncos e folhas, mas cautela: se a floresta vive de
si, deslinear como os meandros de um igarapé, sem si se extinguirá. Como nós.
Sobrevida é sobrenós.
Luiz Alberto Oliveira (físico e curador-geral do Museu do Amanhã)
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