02 julho 2012

Maya e Francesca ou como algumas experiências provocam em nós tremores de terra.

retrato de Maya Deren




Publicado originalmente no Jornal Atual #1, editado pela Azougue Editorial

Algumas experiências provocam em nós tremores de terra. (veja aqui com imagens)

Sem dúvida, uma das mais fortes é o encontro ou a descoberta de um trabalho artístico novo e fresco que nos deixa com aquele frio na barriga que só os grandes encontros amorosos produzem. Quase por acaso, está ali à sua frente a obra de um ser que te deixa desnorteado, perplexo e com uma invejazinha lá no fundo de não ter tido, antes, aquela mesma idéia.

Tive alguns encontros destes pela vida. Os melhores, para mim, se deram solitariamente, quando você está liberado de qualquer compromisso com o tempo cronológico dos relógios e pode realmente viajar no seu próprio tempo interno, ir lá numa gaveta do passado e fazer associações diversas, tropeçar no futuro e finalmente voltar ao presente de novo. O corpo se move nesse vai e vem de sensações, atualizando um virtual pleno de possibilidades. Henri Bergson, um  dos filósofos fundamentais do século XX e referência obrigatória para se discutir a noção de tempo, chamou muito acertadamente essa experiência de duração.[1]

Outro motivo para preferir as descobertas solitárias é que posso nutrir a falsa ilusão de que eu, apenas eu, tive o privilégio de descobrir aquele “tesouro” e que sou guardiã de seu valor, tendo o direito, portanto, de escolher quem é merecedor de ser iniciado neste mistério.

Pois bem, nestes encontros, nosso corpo inteiro parece se mover. Para mim, o melhor termômetro para medir se estou prestes a ter um “treco”, um êxtase artístico, é quando sinto meu abdômen inteiro em brasas. Que brasa boa! Lembro uma vez de ficar chapada em uma das cadeiras do Teatro Municipal depois da apresentação de uma cia de dança contemporânea israelense. Simplesmente era impossível levantar depois de assistir um dueto de um bailarino com um rato. Não era algo pensado gratuitamente para chocar o público, mas um exercício de delicadeza e interação de dois corpos com escalas tão discrepantes. Não havia música, apenas se ouvia a respiração do bailarino. Não havia cenário. Nada. Ali estava em jogo os limites do corpo e uma discussão sobre os limites da dança.

Ao meu lado, na platéia, estava o bailarino Rubens Barbot, que eu conhecia do circuito de dança contemporânea dos anos 1980/1990, quando eu acompanhava todas as montagens que passavam por aqui, tentando suprir meu complexo de bailarina frustada. Ficamos os dois mudos durante o espetáculo, enquanto na platéia se ouviam os “Ohs” e “Uis” a cada vez que o ratinho parecia que ia se descolar do corpo do bailarino e cair no chão. No final, nós dois não conseguíamos levantar. Ele olhava pra mim e eu olhava pra ele. Não era preciso dizer nada. Pra quem um dia dançou ou ainda dança, sabe muito bem o que estas experiências produzem no corpo.

Quero aqui apresentar ou relembrar (pra quem já conhece) dois dos “meus” tesouros mais caros, duas artistas muito atuais que morreram ambas precocemente: a cineasta russa naturalizada americana Maya Deren (1917-1961) e a fotógrafa americana Francesca Woodman (1958-1981).
Eleanora Derenkowsky, nome verdadeiro de Maya Deren, nasceu em Kiev, em plena Revolução Russa. Em 1922 migrou com a família para Syracuse, no Estado de Nova Iorque, por causa dos movimentos anti-semitas que começavam na Rússia e porque seus pais também eram simpatizantes de Leon Trotsky. Maya era o que chamamos hoje de artista multimídia: bailarina, coreógrafa, escritora e fotógrafa, além de cineasta, como é mais conhecida.

Sua carreira no cinema começou no início do anos 1940, quando conheceu Alexander Hammid, famoso fotógrafo e cameraman tcheco, numa turnê da Cia de dança da coreógrafa Katherine Dunham, na qual trabalhava como secretária.

Com Hammid, Maya fez seu primeiro curta-metragem, Meshes in the afternoon, em 1943, considerado seminal para o cinema avant-garde americano e que a consagrou como uma das precursoras do cinema experiemental e underground.  Neste mesmo ano, Maya começou o filme (nunca finalizado) The Witches' Cradle, com Marcel Duchamp, que fazia parte de seu círculo de amigos com Andre Bréton, John Cage e Anaïs Nin. Depois vieram os curtas At Land (1944), A Study in Choreography for Camera (1945), Ritual in Transfigured Time (1945-6), Meditation on Violence (1948), Ensemble for Somnabulistis (1951) e The Very Eye of Night (1952-59).[2]

Com o dinheiro que ganhou com uma bolsa Guggenheim em 1946, Maya viajou para o Haiti e pode ali aprofundar seu interesse pelos rituais voodoos, que ela já havia conhecido na sua pesquisa de mestrado sobre as danças haitianas. No país, Maya não apenas filmou horas de rituais voodoo, como adotou o voodoo como religião. Seu livro Divine Horsemen: the Living Gods of Haiti (1953), é considerado até hoje uma das melhores pesquisas produzidas sobre o tema, mas o longa que o acompanharia ficou inacabado devido à morte de Maya e só foi finalizado em 1981 pelo terceiro marido de Maya, Teiji Ito, também responsável pela trilha incidental de diversos curtas de Maya.

Maya, nome da mãe de Budha e que na religião budista significa “ilusão” ou o “véu” que encobre a realidade, foi adotado pela artista em 1943. Curiosamente, seus filmes provocam reflexões sobre as conexões entre os nossos sonhos e a “verdade” subjacente à realidade. A matéria dos filmes de Maya é a sua própria experiência interna e os conteúdos simbólicos e surrealistas de suas reflexões são usados magistralmente para mostrar que, afinal, a realidade é muito mais sui generis do que parece ser.

Conheci Maya Deren em 2006 durante a pesquisa para o meu mestrado, cujo tema era o tempo e suas representações na imagem contemporânea e, embora seu trabalho não tenha entrado no texto final, a experiência deste encontro foi tão forte que ficou pairando sobre toda a pesquisa e o texto produzido como uma presença incontornável e como referência sobre onde, afinal, eu queria chegar. Sua liberdade como artista e a independência que manteve ao longo de sua curta vida de todo esquema da grande indústria do cinema americano são notadas em cada plano de seus filmes, na forma como usa as noções de tempo e espaço, na ousadia da montagem e na impressão física que seus filmes deixam em nós. Se tivesse vivido, talvez Maya tivesse adotado a  performance como prática, tão forte é a concepção do gesto e do movimento em seus trabalhos. Com Maya, eu tenho vontade de correr na beira do mar salgado, bailar sobre um fundo de estrelas e me abandonar ao devir do tempo que vai e volta e a cada volta atualiza uma possibilidade.

Maya me lembra Francesca Woodman, fotógrafa americana natural de Denver, Colorado, nos Estados Unidos, nascida em uma família de artistas. Artista precoce criada em uma ambiente libertário e estimulante, Woodman começou a fotografar aos 13 anos, elegendo como material de seu trabalho seu próprio corpo e a interação deste com a natureza ao seu redor, com as pessoas mais íntimas e com os objetos mais banais que povoam o nosso cotidiano. Também em Francesca, o uso do espaço é notável, a composição das imagens e o resultado formal das imagens em preto e branco e em cor é magistral. Muitas imagens de Francesca foram produzidas com longas exposições, como se buscasse mostrar, com este recurso, que seu corpo era impressionado pelo tempo, tornando-se o material visível das profundas experiências interiores  pelas quais passava. Nas obras mais tardias, Francesca é apenas um rastro, uma marca sutil no espaço da imagem fotográfica – ela aparece pela sua quase ausência, num processo de desaparecimento da fisicalidade do mundo que vai culminar em sua morte.

A obra de Francesca também inclui videos e livros de artista, como o que é intitulado Some Disorder Interior Geometries, publicado em 1981, pouco antes de sua morte, quando o resto de sua obra se tornou realmente conhecido. Antes disso, ela foi exibida apenas em espaços mais alternativos nas cidades de Nova Iorque e Roma, cidade com a qual Francesca tinha profunda ligação e onde havia passado duas temporadas de estudos.

Conheci a obra de Francesca em 1998, nos Rencontres d’Arles, o festival internacional de fotografia que acontece há 40 anos na cidade de Arles, no sul da França. Cada ano, o festival homenageia um país e em 1998 o país homenageado era a Itália. Acho que por ter parte de sua produção realizada na Itália, Francesca estava na programação do festival, mas sua exposição ficava meio fora do burburinho principal, ocupando uma capela meio escondida. A descoberta de seu trabalho foi um baque para mim: Francesca tinha vivido apenas 22 anos e havia construído uma obra fenomenal, arrepiante. Eu fiquei chapada da mesma forma que alguns anos antes, no Teatro Municipal do Rio, mas desta vez não tinha cadeira pra sentar. Fiquei andando pra lá e pra cá meio zonza, com vontade de dar um grito. Trouxe um livro da exposição que, de tanto rodar nas mãos dos meus “iniciados”, está hoje com as folhas meio gastas. Mas fico feliz ao ver estes “iniciados” nos segredos de Francesca Woodman introduzindo outros felizardos em aulas e bate-papos.

Infelizmente, ambas artistas tiveram mortes trágicas. Maya morreu aos 44 anos devido a uma hemorragia cerebral decorrente de má-nutrição e agravada pelas anfetaminas e pílulas para dormir que tomava há 20 anos e que eram prescritas por seu médico, Max Jacobson, que em 1972 foi investigado pelo The New York Times por criar dependência química em seus pacientes e teve sua licença médica cassada em 1975. As cinzas de Maya foram depositadas no Monte Fuji, no Japão. Francesca morreu com 22, a metade de Maya. Ela cometeu suicídio jogando-se de uma janela do loft no qual morava em Nova Iorque. Francesca estava muito deprimida por uma relação desfeita e com a falta de retorno ao seu trabalho. Contraditoriamente, desde sua morte, a obra de Francesca foi mostrada em inúmeras exposições em toda a Europa e nos Estados Unidos.

Maya e Francesca foram mulheres incríveis e construíram obras que, ainda hoje, provocam tremores de terra. [3]


P.S: Em 2008, apresentei um auto-retrato inspirado em Francesca Woodman na exposição VG (Verdadeira Grandeza), que o Coletivo Buraco organizou na Galeria do Ateliê (www.ateliedaimagem.com.br/galeria). Meu trabalho chama-se Retrato da artista quando Francesca Woodman e foi feito em 2003.


[1] Henri Bergson nasceu em Paris, França, em 1859 e faleceu na mesma cidade em 1941. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1927 e escreveu diversos livros, dentre eles O pensamento e o movente, Matéria e memória e A evolução criadora, editados no Brasil pela Martin Fontes. Sua obra é estudada de forma interdisciplinar, na literatura, no cinema e na neuropsicologia etc.
[2] Recentemente (março de 2009) esta coleção de curtas de Maya Deren passou numa retrospectiva em sua homenagem na Caixa Cultural do Rio.
[3] Existem diversos links para se conhecer a obra de Maya e Francesca na web. A Mystic Fire Video (www.mysticfire.com), empresa de Nova Iorque, lançou em 2006 dois DVDs com a obra de Maya: “Maya Deren, Experimental Films” (com quase todos os curtas de Maya) e Divine Horseman: The Living Gods of Haiti”. A obra de Francesca é representada pela Marian Goodman Gallery, com espaços em Nova Iorque e Paris (www.mariangoodman.com). Diversos livros foram lançados sobre sua obra. O que eu tenho foi lançado em 1998 pela Fondation Cartier pour l'art contemporain, Paris.

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