retrato de Maya Deren |
Publicado originalmente no Jornal Atual #1, editado pela Azougue Editorial
Algumas experiências provocam em nós tremores de terra. (veja aqui com imagens)
Sem dúvida, uma das mais fortes é o encontro ou
a descoberta de um trabalho artístico novo e fresco que nos deixa com aquele
frio na barriga que só os grandes encontros amorosos produzem. Quase por acaso,
está ali à sua frente a obra de um ser que te deixa desnorteado, perplexo e com
uma invejazinha lá no fundo de não ter tido, antes, aquela mesma idéia.
Tive alguns encontros destes pela vida. Os
melhores, para mim, se deram solitariamente, quando você está liberado de
qualquer compromisso com o tempo cronológico dos relógios e pode realmente
viajar no seu próprio tempo interno, ir lá numa gaveta do passado e fazer
associações diversas, tropeçar no futuro e finalmente voltar ao presente de
novo. O corpo se move nesse vai e vem de sensações, atualizando um virtual
pleno de possibilidades. Henri Bergson, um
dos filósofos fundamentais do século XX e referência obrigatória para se
discutir a noção de tempo, chamou muito acertadamente essa experiência de duração.[1]
Outro motivo para preferir as descobertas
solitárias é que posso nutrir a falsa ilusão de que eu, apenas eu, tive o
privilégio de descobrir aquele “tesouro” e que sou guardiã de seu valor, tendo
o direito, portanto, de escolher quem é merecedor de ser iniciado neste
mistério.
Pois bem, nestes encontros, nosso corpo inteiro
parece se mover. Para mim, o melhor termômetro para medir se estou prestes a
ter um “treco”, um êxtase artístico, é quando sinto meu abdômen inteiro em
brasas. Que brasa boa! Lembro uma vez de ficar chapada em uma das cadeiras do
Teatro Municipal depois da apresentação de uma cia de dança contemporânea
israelense. Simplesmente era impossível levantar depois de assistir um dueto de
um bailarino com um rato. Não era algo pensado gratuitamente para chocar o
público, mas um exercício de delicadeza e interação de dois corpos com escalas
tão discrepantes. Não havia música, apenas se ouvia a respiração do bailarino.
Não havia cenário. Nada. Ali estava em jogo os limites do corpo e uma discussão
sobre os limites da dança.
Ao meu lado, na platéia, estava o bailarino
Rubens Barbot, que eu conhecia do circuito de dança contemporânea dos anos
1980/1990, quando eu acompanhava todas as montagens que passavam por aqui,
tentando suprir meu complexo de bailarina frustada. Ficamos os dois mudos
durante o espetáculo, enquanto na platéia se ouviam os “Ohs” e “Uis” a cada vez
que o ratinho parecia que ia se descolar do corpo do bailarino e cair no chão.
No final, nós dois não conseguíamos levantar. Ele olhava pra mim e eu olhava
pra ele. Não era preciso dizer nada. Pra quem um dia dançou ou ainda dança,
sabe muito bem o que estas experiências produzem no corpo.
Quero aqui apresentar ou relembrar (pra quem já
conhece) dois dos “meus” tesouros mais caros, duas artistas muito atuais que
morreram ambas precocemente: a cineasta russa naturalizada americana Maya Deren
(1917-1961) e a fotógrafa americana Francesca Woodman (1958-1981).
Eleanora Derenkowsky, nome verdadeiro de Maya Deren, nasceu em Kiev, em plena Revolução Russa. Em 1922 migrou com a família para Syracuse, no Estado de Nova Iorque, por causa dos movimentos anti-semitas que começavam na Rússia e porque seus pais também eram simpatizantes de Leon Trotsky. Maya era o que chamamos hoje de artista multimídia: bailarina, coreógrafa, escritora e fotógrafa, além de cineasta, como é mais conhecida.
Eleanora Derenkowsky, nome verdadeiro de Maya Deren, nasceu em Kiev, em plena Revolução Russa. Em 1922 migrou com a família para Syracuse, no Estado de Nova Iorque, por causa dos movimentos anti-semitas que começavam na Rússia e porque seus pais também eram simpatizantes de Leon Trotsky. Maya era o que chamamos hoje de artista multimídia: bailarina, coreógrafa, escritora e fotógrafa, além de cineasta, como é mais conhecida.
Sua carreira no cinema começou no início do
anos 1940, quando conheceu Alexander Hammid, famoso fotógrafo e cameraman tcheco, numa turnê da Cia de
dança da coreógrafa Katherine Dunham, na qual trabalhava como secretária.
Com Hammid, Maya fez seu primeiro
curta-metragem, Meshes in the afternoon,
em 1943, considerado seminal para o cinema avant-garde
americano e que a consagrou como uma das precursoras do cinema experiemental e
underground. Neste mesmo ano, Maya
começou o filme (nunca finalizado) The Witches'
Cradle, com Marcel Duchamp, que fazia parte de seu
círculo de amigos com Andre Bréton, John Cage e Anaïs Nin. Depois vieram os
curtas At Land (1944), A Study in Choreography for Camera (1945), Ritual in
Transfigured Time (1945-6), Meditation on Violence (1948), Ensemble for
Somnabulistis (1951) e The Very Eye of Night (1952-59).[2]
Com o dinheiro que ganhou com uma
bolsa Guggenheim em 1946, Maya viajou para o Haiti e pode ali aprofundar seu
interesse pelos rituais voodoos, que ela já havia conhecido na sua pesquisa de
mestrado sobre as danças haitianas. No país, Maya não apenas filmou horas de
rituais voodoo, como adotou o voodoo como religião. Seu livro Divine
Horsemen: the Living Gods of Haiti (1953), é considerado até hoje uma das melhores pesquisas
produzidas sobre o tema, mas o longa que o acompanharia ficou inacabado devido
à morte de Maya e só foi finalizado em 1981 pelo terceiro marido de Maya, Teiji
Ito, também responsável pela trilha incidental de diversos curtas de Maya.
Maya, nome da mãe de Budha e que
na religião budista significa “ilusão” ou o “véu” que encobre a realidade, foi
adotado pela artista em 1943. Curiosamente, seus filmes provocam reflexões
sobre as conexões entre os nossos sonhos e a “verdade” subjacente à realidade.
A matéria dos filmes de Maya é a sua própria experiência interna e os conteúdos
simbólicos e surrealistas de suas reflexões são usados magistralmente para
mostrar que, afinal, a realidade é muito mais sui generis do que parece ser.
Conheci Maya Deren em 2006
durante a pesquisa para o meu mestrado, cujo tema era o tempo e suas
representações na imagem contemporânea e, embora seu trabalho não tenha entrado
no texto final, a experiência deste encontro foi tão forte que ficou pairando
sobre toda a pesquisa e o texto produzido como uma presença incontornável e
como referência sobre onde, afinal, eu queria chegar. Sua liberdade como
artista e a independência que manteve ao longo de sua curta vida de todo
esquema da grande indústria do cinema americano são notadas em cada plano de
seus filmes, na forma como usa as noções de tempo e espaço, na ousadia da
montagem e na impressão física que seus filmes deixam em nós. Se tivesse
vivido, talvez Maya tivesse adotado a
performance como prática, tão forte é a concepção do gesto e do
movimento em seus trabalhos. Com Maya, eu tenho vontade de correr na beira do
mar salgado, bailar sobre um fundo de estrelas e me abandonar ao devir do tempo
que vai e volta e a cada volta atualiza uma possibilidade.
Maya me lembra Francesca Woodman,
fotógrafa americana natural de Denver, Colorado, nos Estados Unidos, nascida em
uma família de artistas. Artista precoce criada em uma ambiente libertário e
estimulante, Woodman começou a fotografar aos 13 anos, elegendo como material
de seu trabalho seu próprio corpo e a interação deste com a natureza ao seu
redor, com as pessoas mais íntimas e com os objetos mais banais que povoam o
nosso cotidiano. Também em Francesca, o uso do espaço é notável, a composição
das imagens e o resultado formal das imagens em preto e branco e em cor é
magistral. Muitas imagens de Francesca foram produzidas com longas exposições,
como se buscasse mostrar, com este recurso, que seu corpo era impressionado
pelo tempo, tornando-se o material visível das profundas experiências
interiores pelas quais passava. Nas
obras mais tardias, Francesca é apenas um rastro, uma marca sutil no espaço da
imagem fotográfica – ela aparece pela sua quase ausência, num processo de
desaparecimento da fisicalidade do mundo que vai culminar em sua morte.
A obra de Francesca também inclui videos e
livros de artista, como o que é intitulado Some Disorder Interior Geometries,
publicado em 1981, pouco antes de sua morte, quando o resto de sua obra se
tornou realmente conhecido. Antes disso, ela foi exibida apenas em espaços mais
alternativos nas cidades de Nova Iorque e Roma, cidade com a qual Francesca
tinha profunda ligação e onde havia passado duas temporadas de estudos.
Conheci a obra de Francesca em
1998, nos Rencontres d’Arles, o festival internacional de fotografia que
acontece há 40 anos na cidade de Arles, no sul da França. Cada ano, o festival
homenageia um país e em 1998 o país homenageado era a Itália. Acho que por ter
parte de sua produção realizada na Itália, Francesca estava na programação do
festival, mas sua exposição ficava meio fora do burburinho principal, ocupando
uma capela meio escondida. A descoberta de seu trabalho foi um baque para mim:
Francesca tinha vivido apenas 22 anos e havia construído uma obra fenomenal,
arrepiante. Eu fiquei chapada da mesma forma que alguns anos antes, no Teatro
Municipal do Rio, mas desta vez não tinha cadeira pra sentar. Fiquei andando
pra lá e pra cá meio zonza, com vontade de dar um grito. Trouxe um livro da
exposição que, de tanto rodar nas mãos dos meus “iniciados”, está hoje com as
folhas meio gastas. Mas fico feliz ao ver estes “iniciados” nos segredos de
Francesca Woodman introduzindo outros felizardos em aulas e bate-papos.
Infelizmente, ambas artistas
tiveram mortes trágicas. Maya morreu aos 44 anos devido a uma hemorragia
cerebral decorrente de má-nutrição e agravada pelas anfetaminas e pílulas para
dormir que tomava há 20 anos e que eram prescritas por seu médico, Max
Jacobson, que em 1972 foi investigado pelo The New York Times por criar
dependência química em seus pacientes e teve sua licença médica cassada em
1975. As cinzas de Maya foram depositadas no Monte Fuji, no Japão. Francesca
morreu com 22, a metade de Maya. Ela cometeu suicídio jogando-se de uma janela
do loft no qual morava em Nova Iorque. Francesca estava muito deprimida por uma
relação desfeita e com a falta de retorno ao seu trabalho. Contraditoriamente,
desde sua morte, a obra de Francesca foi mostrada em inúmeras exposições em
toda a Europa e nos Estados Unidos.
Maya e Francesca foram mulheres
incríveis e construíram obras que, ainda hoje, provocam tremores de terra. [3]
P.S: Em 2008, apresentei um auto-retrato
inspirado em Francesca Woodman na exposição VG (Verdadeira Grandeza), que o
Coletivo Buraco organizou na Galeria do Ateliê (www.ateliedaimagem.com.br/galeria).
Meu trabalho chama-se Retrato da artista
quando Francesca Woodman e foi feito em 2003.
[1] Henri Bergson nasceu em
Paris, França, em 1859 e faleceu na mesma cidade em 1941. Ganhou o Prêmio Nobel
de Literatura em 1927 e escreveu diversos livros, dentre eles O pensamento e o
movente, Matéria e memória e A evolução criadora, editados no Brasil pela
Martin Fontes. Sua obra é estudada de forma interdisciplinar, na literatura, no
cinema e na neuropsicologia etc.
[2] Recentemente (março de
2009) esta coleção de curtas de Maya Deren passou numa retrospectiva em sua
homenagem na Caixa Cultural do Rio.
[3] Existem diversos links para
se conhecer a obra de Maya e Francesca na web. A Mystic Fire Video (www.mysticfire.com),
empresa de Nova Iorque, lançou em 2006 dois DVDs com a obra de Maya: “Maya
Deren, Experimental Films” (com quase todos os curtas de Maya) e Divine
Horseman: The Living Gods of Haiti”. A obra de Francesca é representada pela
Marian Goodman Gallery, com espaços em Nova Iorque e Paris (www.mariangoodman.com). Diversos livros
foram lançados sobre sua obra. O que eu tenho foi lançado em 1998 pela Fondation Cartier pour l'art
contemporain, Paris.
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