[Texto publicado em espanhol na Revista Once, da Maestria de Artes Plásticas de Bogotá, Universidad Nacional de Colômbia, 2006]
A concepção tão popularizada da fotografia como a técnica capaz de aprisionar o tempo e de congelar para sempre uma cena que jamais se repetirá – eterna mumificação da vida -, teve como principal conseqüência a generalização da idéia do instantâneo fotográfico como algo visceralmente associado ao real, como se entre este e o resultado formal da imagem não coubesse nenhuma mediação ou operação conceitual.
Edmond Couchot, artista francês e autor do livro A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual, diz que “com a fotografia, a presença do objeto se torna incontornável. O objeto preexiste necessariamente à imagem. O real faz pressão sobre a imagem e sua exaltação realista ou seu distanciamento com o simbolismo não se torna apenas preocupação dos fotógrafos”*1.
Afastar-se, portanto, do instantâneo, é uma operação muito mais usada por artistas que desejam dissociar a fotografia de uma necessária condição de legitimadora do real, de seu caráter mimético primeiro, que surgiu junto com sua invenção.
Raymond Bellour, autor do livro Entre Imagens, referindo-se a este assunto, afirma: “ (...) Quando a foto decide integrar o traço do movimento visível, dar-lhe seu lugar na tomada e na composição, ela cede a uma força ambígua. Há, por um lado, algo selvagem, elementar, que arrebata o fotografo diante do “real que ele escolheu, para nele favorecer o imprevisível, o que seria artificial ou vão tentar reduzir à pureza afinal imaginária do instantâneo e de suas linhas nítidas, demasiadamente nítidas, que nos levariam a acreditar numa visão translúcida da vida. Mas, por outro lado, nada é menos natural do que as linhas tremidas, as espessuras, os empastamentos por meio dos quais a imagem adquire, no todo ou em parte, uma segunda vida, irredutível à simples visão, à imediatez da visão”*2.
O olho em seu estado normal não vê fora de foco nem conserva inscrito em si mesmo o traço materializado de um movimento, algo que a objetiva, esse falso olho, consegue captar e reproduzir. Mas, muito além dos aspectos maquínicos da operação fotográfica, a questão que o tremido coloca é a introdução do corpo no sistema, como se o olho passasse a operar como corpo, um olho que adere à
paisagem.
Trata-se, portanto, sempre de uma interrupção daquilo que o instantâneo esconde, um estrondo interno na relação entre o corpo-olhar e a realidade que aparece.
A fotografia sempre teve a necessidade de escrutinar o movimento. No início, com Marey e Muybridge, com preocupações científicas, para decompô-lo. Logo depois, seguindo a mesma pesquisa, mas com intenções artísticas, para compô-lo, como podemos ver nas experiências dos irmãos Bragaglia e seu fotodinamismo. De maneira geral, uma das dimensões da vanguarda nas três primeiras décadas do século
(dadaísmo, surrealismo, construtivismo) é essa busca para ultrapassar as fronteiras entre pintura, foto e cinema. O problema hoje, como afirma Bellour, não é mais decompor ou compor o movimento, e sim impressioná-lo. Deixá-lo impressionar, impressionar-se com ele, deixar-se impressionar por ele.
Alain Bergala, no livro que comenta a Correspondance New-Yorkaise do fotógrafo/cineasta Raymond Depardon, distingue duas espécies de fotografias e de fotógrafos: o que acredita na realidade e faz da foto uma arte da presença (que ele chama de fenomenólogo) e o que acredita na realidade como algo impossível e nunca faz mais do que fixar a ausência (o lacaniano). Os artistas que usam os recursos do
tremido, borrado ou desfocado se encontrariam não numa terceira categoria, mas na posição de reunir as duas primeiras, simultaneamente. “O tremido não diz: eu sou a realidade, na qual é preciso acreditar; tampouco diz: eu sou a ausência da realidade. Ele propõe uma realidade duplicada por um afastamento em relação a si mesma: Um signo reconstruído, um signo de arte que procura exprimir uma pulsão do corpo
inscrevendo-se no tempo que se tornou visível”*3.
E é também Philippe Dubois, no livro Cinema, video, Godard, quem sugere que o uso da câmera lenta no cinema, e por extensão o da baixa velocidade na fotografia, funciona como um momento de pesquisa e interrogação sobre a imagem, os gestos e os corpos representados, sobre o que resta de acontecimento no olhar que podemos lançar para as coisas (“desacelerar para ver, não isto ou aquilo, mas ver se há algo a ver”)*4.
Sem dúvida estas reflexões me inspiraram e influenciaram no processo de criação de minha primeira série não-documental, Imagens Posteriores, iniciada em 1998. Nela, me servi intencionalmente de técnicas fotográficas como o uso da baixa velocidade e o deslocamento para criar um “estranhamento” do olhar tendo como matéria a paisagem.
O ponto de partida do trabalho foi a interrogação: como posso interagir com o espaço entre, a partida e a chegada, criado pela velocidade? Geografia embaçada, tempo estendido, foram algumas estratégias para o resultado visual de uma imagem que se pretendia expandida para além do fotográfico. Que pudesse conter música, que pudesse contar com o corpo e emoção do observador em sua própria viagem. Mais tarde, relendo Bellour, deparei-me com uma passagem que antes havia passado despercebida e que me levou a repensar a questão do instantâneo na fotografia.
“Se o congelamento da imagem, ou na imagem, o que poderíamos chamar também de tomada fotográfica do filme, pose ou pausa da imagem que exprime o poder de captação pelo imóvel, se essa experiência é tão forte, certamente é porque joga com a sentença de morte – seu ponto de fuga e, num certo sentido, o único real (...) a sentença que pronuncia a morte é também o que vem suspendê-la, virá-la pelo avesso e devolvê-la à vida, ao tempo de uma vida indeterminada; a narrativa se prolonga para substituir a morte por uma força encantadora, de uma plenitude de enigma (...).”*5
Esta afirmação nos leva a ressignificar o instantâneo fotográfico e nele encontrar uma profundidade que jamais se apresenta por si só. De certa forma, ressignificar o instantâneo não como morte do fluxo, mas suporte de pulsação de vida, foi o mote para a série Fenda, iniciada em 2003 e realizada no espaço íntimo da minha casa.
Quando reconhecemos a balança de um tempo transmutável, onde destruição e desaparecimento estão diretamente ligados ao nascimento ou surgimento do novo, podemos finalmente perceber a urgência da vida e sua capacidade de vencer a morte. No âmbito de diversas culturas, essa capacidade é identificada com a reprodução e em rituais de fertilidade, e é contada em mitologias que chegaram até nós, como na história da deusa Hel, que serviu de inspiração para esta série.
Na mitologia nórdica, Hel é a deusa da Vida e da Morte. Ensina aos mortos como viver da frente para trás. Eles vão se tornando mais jovens, mais jovens, até que estão prontos para renascer e para voltar à vida. A recuperação do divino tem lugar nas trevas de Hel.
Corpo Significante, série iniciada em 2004, é composta de trabalhos que podem ser apresentados separadamente ou em conjunto. Quatro estudos para grandes painéis – Colo, Peito, Mãos 1 e 2 – sugerem uma investigação espacial acerca dos gêneros masculino e feminino e sobre a passagem do tempo notada em partes do corpo de mulheres e homens que não têm sua identidade revelada.
O método visual pode nos remeter a antropometria, estudo das medidas do corpo humano para uso em classificação antropológica e comparação. No século 19 e inícios do século 20, a antropometria era uma ciência usada principalmente para classificar potenciais criminosos pelas características faciais. O cientista Cesare Lombroso, por exemplo, em Criminal Anthropology (1895), afirmava que os assassinos tinham maxilas proeminentes e barba espessa. O trabalho de Eugène Vidocq, que identificava criminosos pelas características faciais, ainda era usado na França um século após a sua introdução (para não falarmos sobre o uso infame desta ciência pelos nazistas).
Não esquecendo esta referência histórica, estas obras falam, no entanto, de uma geografia diáfana inscrita nos corpos onde cada unidade do desenho comum revela-se como uma partícula evidentemente única, um cosmos particular.
O corpo aqui é também usado como paisagem, mas num sentido contrário ao da série Imagens Posteriores, onde desta eram retirados propositalmente os localizadores geográficos que permitem ao observador reconhecer lugares que, de tão explorados turisticamente, já se tornaram monumentos fetiche, prontos para um certo consumo visual. Nos quatro trabalhos citados, o corpo é mostrado por inteiro em suas partes, como mapas onde é possível nitidamente ver as marcas particulares de cada indivíduo.
Os outros trabalhos desta série – Nanorelação e Lugares-Comuns – foram apresentado na Nanoexposição, primeira ação do coletivo GRUPO DOC*6, como foto-objetos.
Em Nanorelação o tamanho de cada imagem é de 2.5 x 1.66 cm, aplicada sobre miniaturas de camas de madeira envoltas com tecido de lençóis. O trabalho é para ser visualizado com uma lupa, reforçando a intenção de fazer do espaço íntimo de uma cama de casal, com todos os seus conflitos e encontros, algo que apenas uma pessoa de cada vez pudesse observar.
Lugares-comuns é constituído de dois dados de madeira de 3 cm cada com imagens aplicadas. O trabalho brinca com palavras recorrentes no universo da arte contemporânea associadas a imagens da preferência nacional brasileira: a bunda.
Esta série reúne trabalhos com resultados visuais diversos mas com uma temática comum: um corpo que produz sentido através de sua própria gramática e de sua relação com outros corpos possuidores de energias em ação e de forças em processo.
Instantânea ou não, uma fotografia é, para mim, mais do que o congelamento do tempo, a compressão do tempo numa arrumação espacial condensada de algo que é puro movimento, luz, um todo que não conseguimos apreender num mesmo tempo, somente por partes. Uma paisagem em devir.
(Notas)
1 COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte: da fotografi a à realidade virtual. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. Pág. 36
2 BELLOUR, Raymond. Entre-imagens: Foto, cinema, vídeo. Campinas, SP: papirus, 1997. Pág. 96
3 BELLOUR, Raymond. Entre-imagens: Foto, cinema, vídeo. Campinas, SP: papirus, 1997. Pág. 105
4 DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
5 BELLOUR, Raymond. Entre-imagens: Foto, cinema, vídeo. Campinas, SP: papirus, 1997. Pág. 13. Grifo meu.
6 Grupo DOC (Desordem Obssessiva Compulsiva), formado pelos artistas Isabel Löfgren, Marco Antonio Portela, Mauro Bandeira e Patrícia Gouvêa.
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