@Abbas Kiarostami, still de Five |
Algumas noções “grudam” no imaginário coletivo – transformam-se em verdades eternas, cláusulas pétreas sempre invocadas quando se aborda o assunto a elas relativo. Um exemplo é o que apresenta o artista como um indivíduo meio gênio, meio louco, noção que vem desde a publicação, em 1872, do livro Genio e Follia, do médico vienense Cesare Lombroso, onde ele teoriza sobre a proximidade entre loucura e genialidade, que seriam as duas faces da mesma moeda psicológica. O Romantismo fixou essa construção com tal solidez que até hoje muitas pessoas ainda crêem nela.
Quando se fala em fotografia indubitavelmente vem à mente a noção de “tempo congelado”, morte do fluxo, derivados do instantâneo ou da pose, senhores absolutos dos domínios da linguagem fotográfica.
Em Membranas de Luz, a artista Patricia Gouvêa desconstrói essas noções como pretexto e ponto de partida para levar o leitor além da superficialidade, instiga-lo a refletir, junto com ela, sobre transcendências – sair da mera reação às imagens para a experiência das mesmas, em especial aquelas que “nascem sob o signo da necessidade, as imagens apresentadas pela arte, que estimulam a inteligência poética e a reflexão crítica e filosófica sobre o mundo.”
E é sob a marca de sua própria necessidade (p. 17) que a autora, permeando todo o livro, impregna-o de uma visceralidade que retira do texto a assepsia e impessoalidade que geralmente caracterizam os textos que se originam de trabalhos acadêmicos, como é o caso deste. A autora, Mestre em Comunicação e Cultura na linha Tecnologias da Comunicação e Estéticas da Imagem pela ECO/UFRJ, utiliza o relacionamento íntimo entre o texto e as ilustrações – experiências – de outros teóricos e/ou artistas para permitir ao leitor não especialista acompanhar o fluxo do pensamento e o aprofundamento dos conceitos de forma segura.
Saindo da aridez da noção de fotografia como documento, a autora abraça a apropriação estética da noção de tempo apresentada por Luiz Alberto Oliveira (originada do campo da biologia), segundo a qual o presente seria como uma membrana, onde passado e futuro se conectam, se interpenetram. Pensando determinadas imagens como membranas, a autora justifica essa abordagem pela capacidade que essas imagens teriam de inaugurar experiências, fabricarem e fazerem surgir mundos (p. 18). Sucedem-se as configurações resultantes dessa noção: o tempo-instantâneo, o tempo-duração, tempo-memória, tempos-mortos, tempo-interativo cujas operações levariam à experiência da duração de que falava Bergson.
Após esses dados iniciais que contextualizam o lugar da fala da autora, os capítulos seguintes vão mostrar a trajetória temporal do pensar a fotografia. Nela pode-se ver como a noção de representação foi tão forte (como já citamos no abertura desta resenha) que a figura do fotógrafo praticamente é elidida. Esse pensamento alcança o ápice na semiologia, em especial em Roland Barthes no texto A Câmara Clara, de 1980.(p. 25). A fotografia, na virada do século 19, como mediadora do invisível traz para os lares burgueses todo o tipo de imagem de vários lugares do mundo, para que conhecessem o mundo “sem sair do conforto de suas casas”. Assim, ela foi “saudada como o protótipo de invenção cuja finalidade e estatuto era o de revelar, e não o de apresentar o mundo”. Esse estatuto só vem desabar com o torrencial fluxo de imagens como processos de verdades provisórias disponíveis na web (p. 27).
A investigação dos movimentos, segundo Lissovsky[1], é o que caracterizaria a originalidade plena atingida pela fotografia na modernidade (p. 30). Em que pese as raízes românticas dessa idéia, sua utilização vai ajudar a compreender os embates que se seguem nos discursos dos fotógrafos como Raymon Depardon, que fala dos “tempos-fracos” em oposição ao “instante decisivo” preconizado por Henri Cartier-Bresson e que tornou-se o símbolo da estética da instantaneidade (p. 33). Em oposição à concepção quase cartesiana de Bresson, Depardon vai propor uma “perpétua incerteza” colocando em pauta uma subjetividade que desafia o “projeto da fotografia-documento e sua pretensa transparência, isenção e imparcialidade em relação aos eventos que registra”. A partir daí, enunciados tais como “fotografia-expressão”, “fotografia naturalística”, “purismo fotográfico”, os diálogos com os movimentos cubista e surrealista, o construtivismo russo, e a Bauhaus alemã vêm sobreajuntar-se para, na década de 80, abrir um campo que Rouillé[2] denomina “fotografia dos artistas”, muito diferente da “arte dos fotógrafos”. Esta seção do livro conclui-se com a observação/síntese sobre o percurso da fotografia: uma imagem técnica que “vai progressivamente afrouxando sua valorização científica e seu contrato de transparência documental e testemunha da realidade até entrar no campo da arte pala mão dos artistas, assumindo um valor estético em meio a um universo de outros suportes” (p. 41).
O conceito bergsoniano de duração envolve a multiplicidade de movimentos e fluxos da experiência do ser. O tempo perde a aceleração pela presença do ser e a ativação de memórias e desejos. É através do aprofundamento dessa reflexão que a autora vai mergulhar no Tempo, adubando daqui e dali com contribuições preciosas para nos conduzir, com ela, a uma viagem sinestésica. Deleuze diz que os conceitos propostos por Bergson confinam com a Teoria da Relatividade (p. 47), ou seja, implicariam numa intuição que se revela verdadeira (ou, para ser mais próximo ao texto da autora, uma virtualidade que se atualiza) quando a visão determinista do mundo-relógio newtoniano foi definitivamente abalada. Ao restituir essa dimensão, essa reaproximação corpo/espírito, Bergson faz uma síntese de onde a autora vai retirar o paradoxo da existência de uma memória dupla – a que reserva um lugar para os fatos ocorridos e uma outra sensório-motora que reage adequadamente aos estímulos do presente[3] (p.51). Esse parece ser o ponto crucial para as abordagens feitas nas leituras de obras dos artistas como Douglas Gordon, Kim, Sooja, Georges Rousse, Alice Miceli, Abbas Kiarostami, Kátia Maciel e Agnès Varda, que vêm reproduzidas no final do texto. A arte, em seu metier de desnaturalizar a percepção cotidiana de fatos, objetos e processos, oferecendo-nos múltiplos acessos aos mesmos (p. 74) torna-os fundamentais para a apreensão das transformações da temporalidade atual, onde “o presente se encolhe e se acelera para dar lugar não a um projeto de futuro, mas à revitalização do passado”. Evocando Walter Benjamim, para quem passado presente e futuro eram “tempos superpostos”, onde o presente sempre está sonhando o futuro e revisando o passado, a autora encontra na arte a possibilidade de “ressignificação poética e crítica (...)atualizando no presente acontecimentos adormecidos referentes a uma idade ou época (p. 77).
Ao apropriar-se da idéia biológica de membrana anteriormente citada, vista como um operador temporal de onde as raízes do presente se desdobram para o passado e o futuro, Gouvêa aborda as imagens apresentadas como objetos complexos, pensando imagens da arte a partir delas mesmas, escolhendo a noção de tempo como elemento principal da análise. Esse “efeito de superfície” (p. 99) permite a atualização de uma das infinitas possibilidades, e “é como se essa possibilidade, essa idéia em forma de imagem que vaga por esse céu pleno, subitamente fosse ativada por uma intimidade, uma energia que a iluminasse e a descolasse desse fundo celeste e se tornasse ela mesma um céu, um mundo a ser apresentado” (p. 99).
O recorte para as abordagens escolhido pela autora resulta em uma obra concisa, que guarda uma leitura densa e agradável, sem excessos, resultando útil não só a pesquisadores e profissionais da área, mas a todos que busquem ampliar o horizonte de suas percepções na fruição e compreensão do mundo através das imagens da arte.
Eurípedes G. da Cruz Junior (IBRAM), Julho/2011
[1] Maurício Lissovsky é historiador, roteirista e professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[2] André Rouillé, professor de arte e filosofia da Universidade Paris-8, especialista em fotografia e arte contemporânea.
[3] Segundo Susan Sontag (Ensaios sobre a Fotografia,Ed. Arbor, 1977), “precisamente por lapidar e cristalizar determinado instante, toda fotografia testemunha a dissolução inexorável do tempo”.
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