02 julho 2012

Uma fenda no tempo, por Claudia Buzzetti


























Fenda s.f. Abertura longa e estreita; racha; frincha; fissura. Uma sugestão, à meia-voz, nos acompanha olhando as imagens. Um referência ao feminino que é quase impossível de ser ignorada, um fil rouge, uma chave de leitura. Patricia Gouvêa explora nessas imagens um universo de arquétipos, e dispõe elementos fundamentais que definem uma pesquisa pessoal sobre a fotografia e sobre o seu próprio gênero.

A referência principal, além dos modelos e das idéias que pertencem à nossa consciência coletiva, é a deusa nórdica da vida e da morte: Hel. Sua tarefa é muito interessante, pois ela ajuda os mortos a rejuvenescer, até eles estarem prontos para renascer: o tema da reencarnação, que não pertence só ao mundo oriental, mas que aparece também em nossa própria cultura ocidental.

Esta referência, dada pela própria fotógrafa, nos indica um caminho para ler a história de Fenda, que aos poucos torna-se quase um nome próprio - uma outra deusa que aparece nos fotogramas e que logo desaparece, deixando uma pista, além de alguns “pertences”.

O ponto de partida dessa viagem foi “um lote de filme médio formato, em preto e branco, com prazo de validade vencido há pelo menos 10 anos”. E um livro como inspiração, da artista Francesca Woodman. Esta série, criada entre 2003 e 2004, foi realizada com uma câmara sem fotômetro, a Rolleiflex, e nos apresenta um lugar de intimidade da artista.

Com este material, Patricia decide “fazer uma experimentação sobre o limite do filme”, prolongando o tempo do vencimento da película com uma longa exposição. Sobrepondo o tempo ao tempo, tenta superar os limites do meio fotográfico. Uma idéia bergsoniana do tempo, que não existe como instante, mas como duração - conceito que se torna ainda mais interessante para se pensar a fotografia.

Muitas são as questões fundamentais no âmbito da fotografia. Mas uma parece central no percurso do trabalho de Patricia Gouvêa: o Tempo. E nesta série ela leva ao extremo seu interesse principal, pois investe a idéia de instantâneo fotográfico - que congela e retém -, de morte e vida eterna, como a própria deusa Hel.



Claudia Buzzetti (Plymouth, GB, 1978) é historiadora e crítica independente de fotografia. Formada pela Università degli studi di Bologna, vive e trabalha atualmente no Rio de Janeiro.








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