04 março 2013

Um trilho posterior, por Pio Figueiroa

Um trilho posterior, texto de Pio Figueiroa, da Cia de Foto, foi lido no lançamento do meu livro semana passada em São Paulo, na Livraria da Vila, num bate-papo sobre o trabalho do qual fez parte também Ronaldo Entler. É uma reflexão potente sobre o meu trabalho e um presente para a vida toda que esta pessoa rara me deu.




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Este texto foi parte de uma conversa no lançamento do livro “Imagens Posteriores” (1) de Patrícia Gouvêa, no qual uma mesa dividida com o professor Ronaldo Entler e com a própria autora encaminhou uma reflexão livre, rápida, poética, do que propõe Patrícia nesta obra. O texto que segue desta fala é aqui publicado como registro afetivo deste momento. Vale a lembrança, o carinho aos amigos que lá estavam e uma breve homenagem à dedicação desta fotógrafa.
Sento em um trem imaginado que parte da estação que propõe André (2) e olho uma paisagem também em repouso. Estamos próximos de Yotala, na Bolívia, em tal trem que se desloca na velocidade de uma abstração. Entre a gente tem uma janela que cria a condição de por, eu e a paisagem, em movimento. De fato estou em repouso. A paisagem também é parada, montanhas há tempos assentadas. Mas na janela um movimento se concretiza. E, aqui, gostaria de falar sobre Fotografia.

Na estação que André propõe, permito-me romper com os trilhos convencionais, canônicos, da história da fotografia para estabelecer um outro trilho, por assim dizer, “posterior”. Neste paralelo, o embarque começa no Renascimento, pois é de lá que, em larga medida, começa-se o projeto da Fotografia, assim como o da modernidade, do capitalismo, ou seja, da cultura ocidental na qual estamos imergidos. O projeto de luz, científico, de ter em mãos o domínio da natureza é objetivo deste movimento humano que séculos à frente vem a se chamar de Renascimento. Pois bem, a máquina fotográfica herda do Renascimento a sua forma de apreender o mundo. Como percebemos, dentro a câmera é simulacro da perspectiva criada naquela época: uma representação realística da natureza pela via de um ponto de fuga que converge linhas paralelas. Tal tridimensionalidade nos ensinou a conceber um espaço representado que de tão natural nos parece o vivido.
Aqui começo o que seria um trilho canônico da história da fotografia: a invenção da perspectiva. Como disse certa vez o professor Ronaldo Entler , “a perspectiva é justamente a tentativa de dar dignidade à uma representação construída a partir de um ponto de vista humano. É também o desejo de extrair desse olhar a referência que estabiliza e hierarquiza todos os elementos da natureza a serem representados. Portanto, a perspectiva representa uma razão que se manifesta por meio dos sentidos”(3). Pois este trilho ganha extensão e percorre a Europa que inventou os dispositivos técnicos, o vidro translúcido, os aparelhos de observação náutica, os óculos e, com eles, o aumento da nossa autonomia de leitura e a afirmação da subjetividade. Como escreve a filósofa D. Gilda de Mello e Souza, “o emprego do vidro translúcido e a invenção das lentes, acelera a visualização progressiva do mundo; o hábito dos óculos amplia a jornada de trabalho e os anos de leitura, a utilização das lentes impulsionam o desenvolvimento decisivo da ciência moderna” (4).
Tempos, estações adiante, chegamos no século XVIII, o romântico, e aprendemos a nos sobrepor como indivíduos. Figuramos a ideia de gênio, um tal autor que tomaria posse de funções outrora divinas. Ainda neste trilho, partimos ao século XIX, de mãos atadas ao cientificismo, com a civilização européia expandida e iluminista por natureza. Reificamos o mundo. Fizemos dele objeto estático de nossa experiência e conhecimento. Neste meio, junto às máquinas, aos grandes deslocamentos, com trens e barcos reconfigurando uma nova percepção, inventamos, definitivamente, a fotografia. A partir daqui este trilho dará em um terminal que todos conhecemos e vivemos sobre um certo projeto de modernidade que pensou dominar a natureza tornando-a estática.
Como alternativa vamos para Yotala, pois lá André nos liberou da condição de tal passado, de tal trilho canônico. “Por que o passado nas fotos de Patrícia, cito André,é sempre muito mais real, muito mais espesso do que o presente, brasa que se apaga à medida que aquece” (5). Como tal, espesso, merece este trilho proposto como posterior, inaugural na Estação de Yotala. E é por este desvio que, me parece, nos transportam as fotografias de Patrícia.
No mesmo ponto em nossa história em que se começava o projeto Renascentista, Francis Bacon, filósofo inglês nascido em 1562, determinava o homem como ministro da natureza – minos de menos, ministro, aquele que é menor do que aquilo que administra, oposição à magistério, maior do que aquilo que administra, o mestre -, uma crítica à tendência renascentista de que o homem pode mais do que a própria natureza. Bacon pensa em um homem capaz de conhecer e administrar o mundo ao qual ele foi dado, não mais do que isso. Seguindo um raciocínio proposto pela filósofa Marilena Chauí em seu curso “Da técnica à tecnologia” (6), magistrado na Faculdade de Filosofia da USP em 2012, Bacon critica o projeto renascentista, condicionando o conhecimento humano à compreensão de que a natureza tem como essência o movimento.
Entre os quatro primeiros aforismos de Bacon, o primeiro diz: “o homem só pode o que os seus olhos constatarem e o que a sua mente puder pensar. Portanto, o que a experiência lhe ensinar e o que a teoria lhe comprovar”. O quarto aforismo, por sua vez, diz: ”no trabalho com a natureza, o homem não pode mais do que unir e apartar corpos. O restante, realiza-o a própria natureza, em si mesma”. O primeiro e o quarto aforismo, estabelecem limites para o homem, que pode conhecer a natureza ou, agir sobre a natureza. E em tal ação pode apenas unir ou apartar corpos.
Porém entre esses aforismos, o primeiro e o quarto, estão os dois aforismos mais conhecidos deste pensador. O aforismo segundo expressa que “nem a mão nua, nem o intelecto deixados a si mesmo, logram muito. Todos os feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares de que dependem em igual medida tanto o intelecto quanto as mãos. Assim como os instrumentos mecânicos regulam e ampliam os movimentos das mãos, os da mente aguçam o intelecto e o precaver”. Este segundo aforismo diz é que o homem encontra uma série de recursos auxiliares pelos quais pode ampliar o poder das mãos e ampliar o poder do intelecto. Considerando que o primeiro aforismo nos disse que o homem só pode o que os seus olhos constatarem e o que a sua mente puder pensar, portanto, o que a experiência lhe ensinar e o que a teoria lhe comprovar, o que o aforismo segundo diz é que esse poder da experiência, o poder das mãos, e esse poder do conhecimento, do intelecto, podem ser ampliados. Assim como os instrumentos ampliam o poder das mãos, podem aumentar o poder da mente ou do olhar.
O aforismo terceiro vai um pouco mais longe e diz: “saber e poder do homem coincidem. Uma vez que sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza, não se vence senão quando se lhe obedece. E o que a contemplação apresenta-se como causa é a regra na prática”. Este aforismo que é sem dúvida o mais conhecido – que diz saber é poder – introduz a relação de causalidade, a exigência de que o conhecimento seja o conhecimento causal, e que poder sobre a natureza é possível na condição de se começar por obedecê-la.
Esses quatros aforismos nos possiblitam a afirmação que de que na natureza a única coisa que acontece é reunião e a separação de corpos. E isso significa que a natureza é movimento, no sentido que ela possui, por ela mesma, força para criar e mudar as coisas. Ou seja, a natureza cria e modifica as formas secretas que constituem a estrutura das coisas. Esse movimento criador e transformador das formas das coisas vem a significar que a natureza é vida. Natura significa aquilo que nasce ou aquilo que tem o poder de dar nascimento a alguma coisa, a ação de fazer vir a existência. E é por isso que a natureza é vida. Ela é fonte de vida, causa de vida e ela própria no seu conjunto é exercício de vida. Por isso, Bacon vai dizer que a natureza é feminina, isto é, fecunda. Ela age de dentro de si mesma para engendrar todos os seres. E precisa, portanto, segundo Bacon, de um agente que possa controlá-la, orientá-la. Esse agente é o homem através da técnica.
Este é o sentido da definição baconiana do que é técnica: a técnica é o homem acrescentado à natureza. O que vem a significar, de forma inédita, que não há diferença de essência entre as coisas naturais e as coisas artificiais; ou entre as coisas produzidas espontaneamente pela natureza e as coisas produzidas pela natureza sob a orientação e o poder da técnica. Porque a natureza é um movimento de reunir e separar corpos; e a técnica é exatamente isto, como dito no quarto aforismo, “o homem só pode reunir ou separar corpos”. Ou seja, a técnica, o homem, só pode fazer aquilo que a natureza, ela própria, faz.
É a primeira vez no pensamento ocidental que o produto da técnica e o produto da natureza são de mesma essência. Sob a aparência de limitar o poder do homem no quarto aforismo, o que Bacon preparou foi a afirmação para um poder praticamente ilimitado desde que a operação da técnica se iguale à operação da natureza: “reunir e separar corpos”.
Bacon nos libera por este “trilho posterior” e ainda entre os séculos XVI e XVII vem a tona os estudos que começam a perverter a criação da perspectiva, aquela forma de representação do Renascimento. Nestes anos constituem-se, no ocidente, teorias e experimentos nomeados de Anamorfose. Seguindo o texto do professor Arlindo Machado, “basicamente, as técnicas clássicas de anamorfose consistem num deslocamento do ponto de vista a partir do qual a imagem é visualizada, sem eliminar, entretanto, a posição anterior, decorrendo daí um desarranjo das relações perspectivas originais” (7).
Há uma forma de apreensão do mundo que não abre mão do movimento, que resulta de em observador também em movimento, e com isto multiplica-se a inconstância do que chamamos de ponto de vista. Observar é unir-se e apartar-se da natureza, conhecer é ser parte misturada a ela. Pois esta ideia de Anamorfose usava de representações subversivas à perspectiva. Já naquela época, havia o movimento de criar paisagens em movimento. Se iniciava a ideia de que o espaço só é percebido em uma dimensão temporal, ou seja, tudo o que vemos vem de uma estrutura discursiva que percebe o mundo consequentemente, isto é, como uma sucessão de eventos. Representá-lo, em certa medida, pressupõe deixar inscrito um passear do tempo sobre o espaço.
O movimento refaz as pretensões humanas. Não há mais na modernidade como reter as imagens pela representação de seus contornos. Em movimento, o mundo moderno passa a ter um devir na forma. No Impressionismo, por exemplo, é o trem (talvez este que saíra da estação de Yotala) um dos agentes que desmonta o estático das representações pictóricas. A realidade é posta pela arte através de impressões que denunciam uma experiência temporal. A partir dali, não se espera mais a simples cópia de uma paisagem, um testemunho fiel de um alvorecer, mas a impressão que tal cena imprime aos olhos de quem observa.
Inventamos o trem. Olhar paisagens que se formavam em uma janela com movimento foi um desses acontecimentos que de tão grande mudou a nossa percepção do mundo. Há uma relação precisa entre a história do trem e a nossa forma moderna de conceber as paisagens em movimento que determinam as nossas vivências. Em parte, este transporte, esta “mídia” moderna, contribuiu na experiência temporal que definiu a nossa relação com a realidade. Trens que nos deslocaram e reconfiguraram em seus movimentos as imagens que formávamos do mundo. Como dito por Marcel Proust, “as alvoradas são um acompanhamento das longas viagens de trem [...]. Vi no quadro da janela, acima de um bosquezinho negro, nuvens recurvadas cuja suave penugem era de um rósea estabilizado, morto, imutável, como da asa que o assimilou ou o pastel sobre o qual o depôs a fantasia do pintor. Mas sentia pelo contrário que aquela cor não era nem inércia, nem capricho, mas necessidade e vida. Por trás dela em breve se amontoaram reservas de luz. Ela avivou-se, o céu se tornou de um encarnado que eu, colando meus olhos à vidraça, procurava distinguir melhor, pois o sentia em relação com a existência profunda da natureza, mas, tendo a linha férrea mudado de direção, o trem fez uma volta, o cenário matinal foi substituído no quadro da janela por uma aldeia noturna de telhados azuis de luar, com um lavadouro cheio do nácar opalino da noite, sob um céu ainda semeado de todas as suas estrelas, e eu desolava por haver perdido a minha faixa de céu rósea, quando a avistei de novo, mas vermelha desta vez, na janela fronteira, que ela abandonou, a um segundo cotovelo da linha férrea; de modo que eu passava o tempo a correr de uma janela a outra, para aproximar, para enquadrar os fragmentos intermitentes e opostos de minha bela madrugada escarlate e fugidia e ter dela uma vista total e um quadro contínuo” (8).
E aqui chegamos à estação que propõe Patrícia em seu livro Imagens Posteriores. Neste ponto, podemos figurar um certo limite na compreensão histórica em perceber a fotografia como imagem parada. A fotografia funciona ativando temporalidades e este estático aparente é mais uma contração de tempos do que ausência de movimento. Quando olhamos uma fotografia depositamos nela um tempo represado na gente, libertamos dela o que está concreto, abstraímos de si o conjunto de linhas e significados que se condensam nesta técnica, mas não param. Como já nos disse o professor Eduardo Cadava, “uma fotografia vale por mil perguntas”. Por mil possibilidades que transformam este “mil” na imagem numérica de um movimento que não se esgota.
As imagens de Patrícia se organizam na distância constituída entre a vida e a consciência. Como nos diz artista Malu Teodoro: “Essa é a imagem que me persegue. A imagem que aparece todos os dias em mim enquanto durmo, não exatamente pela paisagem que ela mostra mas pela situação. É a janela que mostra, pode ser a janela de uma casa, de um carro, de um trem, de um olho. Estar em uma janela a olhar o que está a fora faz ver-se através de uma janela que olha para dentro. É dizer olhar para fora faz enxergar o que esta aqui dentro. Diante dessa imensidão vejo que sou uma poeira, uma montanha, um fio de eletricidade, uma árvore baixa e distante. Nada menos. Diante desse universo sou um pó e observo o universo que me inclui. E vejo dentro dessa paisagem espaços vazios por todos os lados. E me vejo nele, que me vê, que me vejo nele, que me vê, que me vejo nele. Ver pela janela me faz olhar para dentro. Vejo varias linhas de tempo se cruzando. Lá no infinito as montanhas passam lentamente, no primeiro plano os postes de luz correm desesperadamente. Em segundo plano de vez em quando aparece uma pessoa, um cavalo, uma árvore. Conforme me acerco de um objeto mais rápido ele corre de mim. Essa imagem não tem data, não tem validade. É eterna em seu próprio tempo. E em qualquer lugar que ela esteja me faz sentir coisas. Ela é fraca, ela não fala por si mesmo e essas palavras também são fracas. Posso ver a mesma paisagem muitas vezes e sempre aparecerá algo novo, e todas as paisagens, de todos os lugares, no final podem ser a mesma, pois são imagens que existem mais dentro de mim do que no mundo de verdade. A paisagem respira no ritmo que piscam meus olhos. A imagem respira em si mesma e também dentro de mim” (9).
Estamos falando da janela como imagem técnica. Da paisagem como matéria elástica. O nome fotografia tem uma transparência e é assim cheio da claridade que nos permite imprimir sentidos. Carrega em si um heroísmo sem ênfase, uma ação sem passo dado, um silêncio recalcado de cultura. Janela que transporta o mundo e imprime o desejo por paisagens que dilatem a condição de nossa presença. Diáfana, as coisas ganham uma temporalidade única quando tocam sua superfície, que parece prometer um lugar que existe dentro de nuvens. A fotografia é janela que expõe como refração o eco de um tempo que promete ralentar. Cada frame exposto acumula um mundo que se apresenta como se tudo em nossa volta dependesse de janelas.
O trabalho de Patrícia tem o movimento como condição essencial. A janela é o próprio trajeto, o percurso em uma transparência latente que ganha forma de paisagem quando toca tal janela. Patrícia em repouso, sentada no “trem” que a transportava; a paisagem em repouso na distância que acompanha tal viagem. O movimento existe quando toca a janela pois, o que é paisagem lá se liquefaz, momentaneamente, e ativa o instante em que o encontro entre Patrícia e tal paisagem se realiza. A fotografia que ela faz não é senão desta janela. Todo movimento que Patrícia imprime mora, vive, é condição única, de janelas. Paisagens que escorrem como uma espécie de calda, de lava, quente como o quê, que ainda não virou solo para se pisar. O que faz Patrícia é fotografar um “projeto”, um pedaço da gente que está antes, anterior a forma de se apresentar. No trem em que se “fotografa a saudade” (10), finalizaria provocando-a: talvez suas imagens sejam anteriores.
(1) Patrícia Gouvêa , Imagens Posteriores, Rio de Janeiro, Ed. Réptil, 2012
(2) André Viana, jornalista, escritor do texto Territórios da Saudade, in. Imagens Posteriores de Patrícia Gouvêa, Rio de Janeiro, Ed. Réptil, 2012
(3) Ronaldo Entler, no post Realegoricações da caverna,hyperlink:http://iconica.com.br/blog/?p=4541
(4) D. Gilda de Mello e Souza em Variações Sobre Michelangelo Antonioni, in. O Olhar, (org) Adauto Novaes, São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1988. P.(399)
(5) André Viana em Territórios da Saudade, in. Imagens Posteriores de Patrícia Gouvêa, Rio de Janeiro, Ed. Réptil, 2012
(7) Arlindo Machado, Anamorfoses cronotópicas ou a quarta dimensão da imagem, in. Imagem Máquina(org.) André Parente, São Paulo, Ed. 34. P.(100)
(8) Proust, M. Em busca do tempo perdido, à sombra das raparigas em flor, São Paulo : ed. Globo, 2006. Pg. (280 e 281)
(9) Malu Teodoro, citação extraída do vídeo Contigo quero dividir minha solidão, Para Igor. No hyperlink: http://maluteodoro.blogspot.com.br/
(10) André Viana em Territórios da Saudade, in. Imagens Posteriores de Patrícia Gouvêa, Rio de Janeiro, Ed. Réptil, 2012.



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